Os chinelos ficam na porta e a energia negativa do lado de fora. A proposta é sentir os pés no chão e abrir o coração para a natureza. Aqui é ela quem manda. Desta forma fomos convidados para adentrar a Reserva Pataxó Porto do Boi, lar de cerca de 50 indígenas de 18 famílias que vivem em Caraíva, no município de Porto Seguro, Bahia, e recebem visitantes para uma imersão especial na cultura ancestral Pataxó, onde apresentam sua cultura, tradições e um pouco de seu dia a dia.
A Reserva Pataxó Porto do Boi é uma aldeia indígena familiar. Uma das cerca de 20 que resistem no município. De acordo com a prefeitura de Porto Seguro, cerca de 20 mil indígenas pataxós vivem na região hoje. A Bahia, aliás, é o segundo estado brasileiro com maior população indígena, de acordo com o Censo do IBGE 2022. No entanto, quem visita o extremo sul da Bahia em busca das praias paradisíacas, muitas vezes não se lembra que está cercado por povos indígenas – justamente na região onde os Portugueses iniciaram seu processo de dominação e extermínio.
Todas as manhãs, os indígenas abrem as portas da reserva e apresentam algumas das suas tradições mais importantes para os visitantes. O turismo na Reserva Pataxó Porto do Boi já acontece desde 2004 e sempre foi liderado pela própria comunidade. “É muito importante podermos receber esses visitantes porque muitos deles não conhecem a nossa história. Nós temos a oportunidade de passar para essas pessoas não só um pouco da nossa cultura, mas também o respeito com a mãe natureza, com a nossa espiritualidade, com o outro. E, muitas vezes, é até mesmo um autoaprendizado para cada um pensar sobre a valorização das suas próprias raízes”, acredita Tapy Pataxó, uma das responsáveis pela experiência de visitação na aldeia.
Esta foi minha primeira experiência de conexão com povos indígenas e não poderia ter sido mais especial. Alguns dias antes eu pude participar do festival de literatura indígena Caju Leitores, que aconteceu de 4 a 7 de setembro na Aldeia Xandó, também em Caraíva. Sentar e ouvir pessoas indígenas de diversas partes do Brasil falarem sobre suas ideias, escritas, sonhos, crenças, formas de pensar a vida e culturas foi uma oportunidade única de aprendizados e reflexões. Deixo vocês com a frase de Daniel Munduruku: “O ser humano é o único animal que precisa de respostas para a sua existência”.
Quem é o povo Pataxó?
Os indígenas Pataxó estão distribuídos hoje entre o extremo sul da Bahia e o norte de Minas Gerais. São cerca de 36 aldeias na Bahia, nos municípios de Porto Seguro, Santa Cruz de Cabrália, Prado, Itamaraju, e sete comunidades em Minas. Acredita-se que a Terra Indígena de Barra Velha do Monte Pascoal, onde se localizam, entre outras, a Reserva Pataxó Porto do Boi e a Aldeia Xandó, em Caraíva, existe há quase dois séculos e meio, desde 1767.
O povo Pataxó vivia tradicionalmente em bandos seminômades mas acabou se fixando em alguns territórios também como forma de resistência. Os Pataxó hoje falam português e sua língua originária foi praticamente extinta. No entanto, em um esforço de resgate da cultura e da língua, está acontecendo um “processo de retomada da língua pataxó”, que passou a ser chamada de Patxohã – “língua de guerreiro”. Muitas escolas nas aldeias hoje ensinam tanto o português, quanto o Patxohã, além de validarem os saberes locais e ancestrais da etnia Pataxó.
Pataxó significa “barulho das águas” e eles se identificam como o povo do mar.
Como é a vivência indígena na Reserva Pataxó Porto do Boi
A aldeia está localizada a menos de 5 km do centro da vila de Caraíva. Para chegar lá você tem duas opções: contratar um dos bugeiros das associações indígenas locais ou subir de barco pelo Rio Caraíva com a Associação dos Nativos de Caraíva. Eu segui esta segunda opção e foi realmente mágico aproveitar a oportunidade para conhecer as paisagens do interior deste rio lindo que deságua no mar.
A experiência na Porto do Boi começa por volta de 9h com uma pintura corporal Pataxó. Os indígenas utilizam carvão com açúcar, urucum e argila para produzir as diferentes cores dos pigmentos. Eles explicam que cada pintura pode ter significados diferentes ou simplesmente não ter significado nenhum. As pinturas femininas normalmente são diferentes das masculinas e elas também podem indicar se você é solteira, comprometida ou casada. Os artistas perguntam na hora a parte do corpo que você quer pintar e, claro, você também pode optar por não fazer a atividade. Importante saber que a pintura sai facilmente com água.
Em seguida, somos convidados a visitar a Oca Mãe, um dos locais sagrados para a comunidade, onde acontecem casamentos, batizados, rituais e outras festividades. Ali nós temos a oportunidade de assistir a uma palestra sobre a história do povo Pataxó e a importância da preservação da sua cultura. Quando visitei a aldeia, quem conduziu a fala foi Biraí. Ele aproveitou para lembrar como aquele território viveu muito derramamento de sangue e como a natureza vem sendo destruída, destacando que uma das missões do povo dele é manter a floresta saudável e de pé.
O ritual segue com uma defumação de purificação e limpeza energética com incenso de amesca, música, canto e dança, na celebração do Awê Pataxó, e os visitantes são convidados a participar. Cada um recebe uma maraca e dançamos em roda junto com a comunidade. Ao final, os turistas são convidados a participar da medicina do rapé, uma das tantas medicinas de limpeza espiritual e tratamento que os Pataxós praticam. Nossos anfitriões explicam que essa medicina é sagrada e que pode causar alguns efeitos adversos leves, de acordo com o estado espiritual de cada um. Por isso, a participação é totalmente opcional.
Achei a fala muito pertinente para buscar desconstruir a moda que viraram os rituais de cura indígena entre a branquitude. No meu ver, precisamos refletir mais sobre respeito a culturas e pertencimento antes de sair buscando rituais para postar nas redes sociais. Eu, assim como muitos outros visitantes, decidi não participar.
Seguimos então para a cozinha Pataxó, onde as jokanas (mulheres indígenas) preparavam um delicioso almoço tradicional: peixe na folha de patioba com banana da terra e farinha de mandioca. Almoço tradicional indígena é sem talheres, claro. A patioba (folha de palmeira) é utilizada por eles com diversas funções, como, por exemplo, para dar sabor aos alimentos ou até como meio de comunicação na floresta.
A imersão termina com um delicioso banho de ervas medicinais para limpeza e descarrego. O banho é preparado com folha de aroeira e amesca, outra planta sagrada para os Pataxós, que tem propriedades cicatrizantes, calmantes e de purificação. Ao fim das atividades, temos a oportunidade de visitar a lojinha Pataxó e, claro, aproveitarmos para levar para casa alguns dos incríveis artesanatos produzidos por eles.
Vale lembrar que toda essa experiência foi desenvolvida pelos próprios moradores da Reserva Porto do Boi para apresentar aos turistas um pouco da cultura Pataxó e visitá-los é uma forma não só de desconstruirmos nosso imaginário colonizador sobre os indígenas, mas também de apoiar a preservação das suas tradições.
Ritual da Lua Cheia – Ãgohó Tibá
Todos os meses durante as noites de lua cheia, a Reserva Pataxó Porto do Boi promove o Ritual da Lua Cheia, celebrando um ritual ancestral que os indígenas faziam na praia para homenagear o criador do povo Pataxó. Neste ritual eles agradecem a fartura e convidam os visitantes para também se conectarem com a mãe lua. O ritual também inclui conversa e histórias Pataxó, banho de ervas, comida típica e medicina do rapé. Eu, infelizmente, não tive a oportunidade de participar do Ritual da Lua Cheia enquanto estava lá. Mas já estou doida para voltar para essa vivência!
Palavras do vocabulário Pataxó da língua Patxohã para você aprender antes de ir:
Awery – obrigada
Auiry – bom dia
Imamakã – mãe
Jokana – mulher
Kamaiurá – coragem
Kijeme – casa
Kitoke – menino | Kitokirré – menina
Miriaú – boa tarde
Nit Awery – muito obrigada
Raiô ou ramaten – sol
Terré – chuva
Thirry – índio
Tuke-tukerrê – boa sorte
Werymerry – amor
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